“A literatura pode ser a mesa onde todos saboreamos os valores da nossa consciência social”

Pedro Sequeira de Carvalho, escritor são-tomense fala sobre a sua obra, a importância da literatura na transformação social e o papel da lusofonia na construção de uma comunidade plural

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Pedro Sequeira de Carvalho, escritor natural de São Tomé e Príncipe. Foto: divulgação
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Natural de São Tomé e Príncipe, o escritor Pedro Sequeira de Carvalho tem vindo a afirmar-se como uma das vozes mais consistentes da literatura africana de língua portuguesa contemporânea. Entre o arquipélago que o viu nascer, Portugal — onde consolidou a sua carreira — e o Brasil — país que o acolheu literariamente —, o autor constrói uma trajetória marcada pela reflexão sobre identidade, ética e pertença.

Com romance “O Branco e a Preta” (2025), editado pela In-Finita Editorial, Pedro Sequeira de Carvalho mergulha nas contradições da sociedade são-tomense e nas heranças do colonialismo, explorando o amor, a desigualdade e o desafio de escrever a partir de um espaço insular que dialoga com o mundo.

Além da escrita, o autor fundou a companhia teatral “DEMOS”, através da qual promove peças que abordam temas sociais como a igualdade de género e o combate à pobreza, apostando no teatro como ferramenta de consciencialização e transformação.

Em entrevista à nossa reportagem, o autor fala sobre o seu percurso literário, as influências da lusofonia e o papel da literatura na construção da consciência social e cultural do seu país.

A sua trajetória literária começou em São Tomé e Príncipe, mas consolidou-se também em Portugal e no Brasil. De que forma essa vivência entre continentes influenciou a sua escrita e o olhar sobre a literatura lusófona?

Eu sou da ilha pelo que, sair da ilha é sempre uma mais valia, porque faz-me ver melhor a ilha e mais importante, faz me ver que aquilo que é feito na ilha é útil para a humanidade. Ainda, ter contacto com Portugal e Brasil funciona como um leque, uma vez que abre a minha mente para outras questões que não são relevantes para São Tomé e Príncipe, mas são importantes para esses países. E, esta abertura faz-me ver com outros olhos as questões da lusofonia. Somos uma comunidade, mas estando na ilha parece que está tudo na corrente da normalidade, mas o meu contacto com Portugal e Brasil me faz ver que ainda falta muito para que haja uma comunidade plena e que a literatura poderá contribuir e, de que maneira, para que haja, de facto, esta comunidade. Por outro lado, os contatos com outros povos e países dá-nos a certeza de que, nos final das contas somos todos humanos e uma literatura que faz bem a um português, uma brasileira, faz bem também a um ou uma são-tomense.   


O romance “Leonor”, publicado em 2016, marca a sua estreia no panorama literário. Que temas o motivaram a escrever esta obra e de que maneira ela dialoga com a realidade são-tomense contemporânea?

Quem lê as minhas obras vê que não são os livros de uma história, mas sim livros de várias histórias. Quanto à Leonor, o que mais me motivou a escrever, foi o vazio que se manifestava em mim- eu sentia que tinha várias histórias sobre as realidades de STP que não eram contadas, por isso eu decidi contá-las. A obra é centrada em três protagonistas: a Leonor, o Padre António e o Emanuel. A Leonor foi inspirada em minha mãe que se chama Leonor e, tal como ela, a Leonor do livro é uma mulher comum são-tomense, cheia de virtudes e com alguns defeitos. Padre António é um padre que assume a sua posição de homem, feito de carne e osso, admite as suas fraquezas humanas, mas o reconhecimento desta condição humana faz com que ele tenha a plena consciência de que deve ser muito firme para não ceder às paixões da carne, porque como padre, tinha uma missão maior. O Emanuel era um jovem otimista e idealista, características que faltam em muitos jovens nacionais. Entretanto, para além dessas três personagens protagonistas desta história de amor que teve um final feliz, havia ainda outros personagens sobre tudo os da família da Leonor que também contribuíram para colorir o livro. Este romance tem uma história de amor como o seu pano de fundo, mas se comunica com a sociedade são-tomense em seus aspetos históricos, sociológico, cultural, religioso, filosófico e psicológico. Leonor é uma obra que está totalmente conectada com a realidade são-tomense,  caracterizando a sociedade como ela é e, através de alguns personagens, como ela deveria ser.

A sua produção teatral, através da companhia “DEMOS”, aborda temas sociais como a igualdade de género e o combate à pobreza. Como o teatro e a literatura se complementam na sua missão de intervir e transformar a sociedade?

Eu sinto que nem a literatura, nem o teatro tem contribuído o suficiente para a transformação da sociedade são-tomense. E pelos sinais, ainda falta muito para que isto aconteça efetivamente. Há sobejos sinais de que “a ceara é grande e, a mão-de-obra é pouca”. A literatura e o teatro ainda tem sido coisas das elites. As produções são dirigidas para as elites nos sentido de manter o seu “status quo”. A massa social, o povo, ignora por completo as importâncias dessas artes sublimes (literatura e o teatro). Os livros são ignorados pelas massas e o teatro transformador não chegam aos olhos do povo. Os teatros que chegam às massas são somente os lúdicos. Todavia, tem havido sinais motivadores. O meu grupo teatral “DEMOS”tem um espaço televisivo e um espaço onde realizamos espetáculos ao vivo. Esses dois espaços fazem com que o público tome contato com as nossa peças que, têm como missão levar à reflexão sobre os temas sociais como a igualdade de género, o combate à pobreza e outros mais. Eu que escrevo a grande maioria das peças teatrais do “DEMOS” e esta prática quase que inaugura em São Tomé e Príncipe a produção escrita de textos para o teatro. Antes o grupos basicamente trabalhavam somente recorrendo ao improviso, mas hoje o grupo “DEMOS” já interpreta o excerto do meu livro, contos e histórias escritas por mim. Há um género de teatro que quase que não era praticado na nossa sociedade, sobretudo para os espetáculos longos, que é o monólogo, mas hoje já realizamos espetáculos longos de uma hora com monólogos apresentados, sobretudo pelo atriz Adozia Cristo, cujo nome artístico é Saco de Boxe. Ela é uma atriz com capacidades extraordinárias e é apelidada por alguns de “a menina dos monólogos”. Podemos dizer que é pelas mãos dela que o público são-tomense ficou a conhecer e a muito gostar do monólogo, enquanto um género de teatro. Há um facto relevante verificado no nosso grupo que tem a ver com o multiculturalismo. No grupo “DEMOS” temos também a colaboração de pessoas de outras nacionalidade, o que tem sido bastante enriquecedor, a título de exemplo recentemente realizamos um espetáculo de monólogo com um texto dramático escrito por mim, intitulado “As declarações do adeus” que foi apresentado Daniel Romero, como nome artístico “Mona. Ele é espanhol, reside em São Tomé como cooperante, mas conseguiu apresentar um monólogo de 50 minutos de uma forma comovente, arrepiante e prender a atenção do público até aos último minuto.  Acredito que a relação entre a literatura e o teatro gozam de uma melhor saúde que antes e, que este esforço para que continue havendo a complementaridade entre essas duas áreas deve continuar para o bem do nosso país e, talvez de toda a humanidade.      

A sua mais recente obra, “O branco e a preta” (2025), editada pela In-Finita Editorial, parece continuar um percurso de reflexão sobre identidade e convivência. Que mensagem pretende transmitir com este romance e como ele se insere na sua evolução como escritor?

Como disse, o meu livro não é um livro de uma mensagem, mas sim de várias mensagens. Uma das mensagens que pretendo transmitir com este livro é que o colonialismo deixou marcas, muitas ruins e outras boas. Hoje o facto de termos uma sociedade multicultural é por causa do colonialismo e isto tem contribuído para que tenhamos um repertório cultural muito rico. Por outro lado, a falta do investimento social, a profunda desigualdade, o racismo institucional, a exploração do homem pelo homem, a necessidade que os colonos tinham de dividir para reinar são marcas que ainda afetam negativamente a nossa sociedade. Mas apesar disto, o amor pode ser uma força unificadora, embora nem sempre capaz de ultrapassar todas as barreiras. O amor não tem cor, mas pode ser impedido pela cor, de ser vivido. Há uma outra grande motivação por detrás da escrita deste livro que é a necessidade de termos e vermos as nossas histórias a serem contadas por nós. Os factos poderão ser os mesmos, mas uma história contada pelo caçador jamais será contada da mesma forma pelo leão. E o mundo clama por mais histórias contadas pelos leões. Em relação à minha evolução como escritor, para quem já leu outros meus livros anteriores, dá conta, de facto, que houve um aumento de maturidade enquanto escritor. Eu já tenho quatro romances (Leonor, Nós temos sonhos, As curvas da vida e este último O branco e a preta), mas considero este o mais bem escrito, fruto de várias críticas recebidas dos leitores dos livros anteriores, sobretudo no que concerne aos ligeiros erros ortográficos. Mas devo dizer que a In-Finita Editorial também foi fundamental neste processo, não se preocupando somente em publicar mais um livro, mas ainda em publicar algo com qualidade. Um nome que devo referir também é do escritor Albertino Bragança que é o Presidente da UNEAS – União Nacional dos Escritores e Artistas são-tomenses. O senhor é um exímio conhecedor da Língua Portuguesa e neste livro eu pude contar com a sua colaboração enquanto revisor. Escrever já é um trabalho gigante e, escrever com qualidade é pior ainda, sobretudo para uma pessoa como eu que não vem de um meio literário. Eu sou dos primeiros de todos os tempos, da minha família toda a ter um curso superior. Em casa, os únicos livros que conheci eram duas Bíblias Sagradas, uma forrada e a outra de capa preta. Comecei a ler já na adolescência, não estou rodeado de amigos, familiares e pessoas que consigam fazer críticas construtivas e, não por culpa delas. Este livro trouxe-me até a 95ª Feira do Livro de Lisboa e, a responsável da editora, a estimada amiga Adriana Mayrinck, fez um comentário, com o seu rosto feliz, dizendo que eu era o seu autor com mais livros vendidos na Feira. Eu não podia ouvir um melhor comentário que este. Conheci a Adriana ainda neste ano pela Dyandreia que é a presidente do grupo “Redes Sem Fronteiras”, uma pessoa que eu tenho muita estima e, hoje, temos já um forte laço de compromisso profissional. Uma boa editora e, sobretudo, um bom revisor não é tudo, mas é muito importante para um escritor como eu que nunca teve um curso de escrita. Por tudo isto, tenho a plena consciência do longo caminho que tenho de percorrer para atingir a plena maturidade enquanto escritor. Assumo esta missão com a consciência plena de que o caminho faz-se caminhando.

Participou em coletâneas e revistas literárias em Angola e no Brasil, reforçando uma rede criativa entre autores africanos e lusófonos. Que importância atribui à circulação dessas vozes literárias no fortalecimento da literatura africana de língua portuguesa?

Essas experiências são de elevadas importâncias, porque com elas reforçam a consciência dos valores comuns que nos norteiam enquanto humanos e escritores, sobretudo para mim que sou de um arquipélago com um tamanho minúsculo, ter contatos e participações juntos com outros escritores serve como uma força animadora para sabermos que não estamos sozinhos e abre também as possibilidades para que as nossas obras sejam conhecidas nos outros países.

Entre o direito, o ensino e a escrita, a sua obra revela um compromisso ético com a palavra e com o ser humano. Que papel acredita que a literatura desempenha hoje em São Tomé e Príncipe na construção da consciência social e cultural do país?

A literatura desempenha, ou melhor, deveria desempenhar um papel fundamental na construção e da manutenção da consciência social e cultural de São Tomé e Príncipe. Parece que no mundo todo e, em particular no meu país o sentido da consciência social dos cidadãos está em crise e, estamos a enfrentar uma crise cultural aguda. A literatura deveria ser o despertar e o resgatar do consciência social e cultural. A literatura poderia ser a mesa onde todos nós que desejamos viver juntos poderíamos saborear dos valores que nos levariam a ter uma melhor consciência social e uma maior defesa daquilo que consideramos da nossa cultura. Atualmente, a literatura não tem desempenhado o papel que deveria desempenhar, não tem havido escritores em quantidade e, em qualidade que escrevam as diversidades de assuntos que possam efetivamente levar a sociedade à mudança necessária. Quando há poucos escritores é mais fácil a literatura falhar com os seus objetivos, por isso, seria bom que houvesse mais escritores a nível nacional para que possamos formar uma corrente suficientemente forte para que a mesma possa exercer o seu verdadeiro papel que é de manter ativa a consciência social dos cidadãos e preservar as culturas dos povos.  ■

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