Entre a guerra e o pão: por que vieram? A década de 1960 foi marcada por transformações profundas em todo o mundo, mas para os portugueses de origem humilde, especialmente das regiões do interior como Trás-os-Montes, Minho, Beiras e Algarve, esse foi um período de fuga. Fuga da miséria, do regime autoritário salazarista e, principalmente, da Guerra Colonial Portuguesa, que se iniciava em 1961 em Angola, espalhando-se para Guiné-Bissau e Moçambique.
Sob o Estado Novo, liderado por António de Oliveira Salazar, Portugal vivia isolado, economicamente atrasado e politicamente oprimido. A juventude era convocada para lutar nas colônias africanas, em uma guerra que se estenderia até 1974, sem sentido para a maioria da população pobre. O alistamento militar obrigatório forçou muitos jovens a buscar refúgio em outros países.
O Brasil surgia como a grande esperança. Com a mesma língua, laços históricos e uma cultura que misturava o familiar e o exótico, o país tropical era visto como uma terra de oportunidades. Era comum ouvir que “no Brasil, até o chão dá dinheiro”. Essa imagem romântica, reforçada por cartas de parentes e conhecidos que já haviam migrado, convenceu milhares de portugueses a fazer as malas e zarpar rumo ao desconhecido.
A viagem: navios, esperanças e incertezas
A travessia do Atlântico era feita, em sua maioria, em navios como o Vera Cruz, Santa Maria, Funchal e Niassa. As passagens muitas vezes eram compradas com ajuda da família ou por empréstimo. Homens jovens viajavam sozinhos e mandavam buscar esposas e filhos depois de se estabilizarem. Não eram migrantes temporários: eram exilados voluntários, determinados a construir uma nova vida.
No porão dos navios, além das malas de madeira, traziam o receio do fracasso, saudades antecipadas e promessas feitas aos pais — “vou voltar rico”, diziam. Poucos voltaram. E, quando o fizeram, já não eram os mesmos, e nem Portugal era.
Chegada ao Brasil: um recomeço duro, mas possível
Ao desembarcar em portos como Rio de Janeiro, Santos, Salvador ou Recife, a realidade era bem diferente dos sonhos. Sem redes de apoio institucionais, os portugueses recorriam a igrejas, conterrâneos ou associações beneficentes. Muitos se instalaram em bairros operários e de classe média como Méier, Lins de Vasconcelos e Cascadura (RJ), Brás e Mooca (SP), Bonfim (Salvador), bairros onde ainda se ouve, de vez em quando, um “pois pois”.
O preconceito existia. O termo “portuga” era frequentemente associado à ignorância, à simplicidade. Mas havia também admiração pela honestidade, pontualidade e dedicação ao trabalho. Os portugueses se tornaram rapidamente associados à padaria, ao pequeno comércio, à construção civil e às profissões manuais. A imagem do português padeiro ou dono de armazém consolidou-se com justiça: esses setores eram dominados, de fato, por famílias lusas.
Os setores em que os portugueses se destacaram
Panificação: abrir uma padaria era o sonho de quase todo português recém-chegado. Além de gerar renda, permitia empregar familiares e garantir moradia;
Pequeno comércio: armazéns, mercearias e quitandas eram comuns entre os imigrantes;
Construção civil: muitos atuavam como mestres de obras, pedreiros e carpinteiros — profissões com grande demanda nos centros urbanos;
Serviços: barbeiros, alfaiates e sapateiros também faziam parte do repertório luso.
Fé, saudade e identidade
Nas casas modestas, a devoção a santos como Santo Antônio, Nossa Senhora de Fátima e São José era parte da rotina. Muitos imigrantes organizavam novenas, missas e festas religiosas. A saudade se expressava no fado, na carta escrita com caligrafia redonda e nos telefonemas curtos e caros para a “terrinha”.
Para suportar a distância, criaram clubes e associações como a Casa de Portugal, clubes portugueses, ranchos folclóricos e jornais comunitários. Esses espaços ajudavam a manter viva a cultura de origem e a orientar os recém-chegados.
A geração que envelheceu entre dois mundos
Hoje, os que chegaram nos anos 60 e 70 estão em sua maioria entre 80 e 90 anos. Muitos já partiram, e os que ficam vivem discretamente, muitas vezes sozinhos ou em lares de idosos. São, literalmente, a última geração portuguesa a migrar para o Brasil em massa.
“Nunca deixei de ser portuguesa, mas o Brasil virou minha casa. Meus filhos são brasileiros, meus netos não falam nada de Portugal. É triste, mas é o tempo”, disse Maria das Dores Fonseca, 84 anos, ex-costureira no Rio de Janeiro.
Um legado que vive no sangue e nos hábitos
Mesmo sem perceber, milhões de brasileiros de hoje têm sangue português. Estima-se que mais de 30 milhões de brasileiros tenham algum grau de ascendência lusa. O legado está nos nomes (Antônio, Manuel, Maria, Lúcia), nas comidas (broa, pastel de nata, bacalhau), nas expressões do cotidiano (“ora pois”, “deu-me uma saudade”) e nos valores familiares como o respeito aos mais velhos, o esforço e a fé.
A importância da memória
Infelizmente, o Brasil pouco registra a história dessa imigração tardia. Os livros escolares falam dos portugueses colonizadores ou da imigração europeia do século XIX, mas ignoram quase por completo o fluxo migratório das décadas de 1950 a 1970. Uma ausência que precisa ser corrigida.
Cabe a nós, filhos, netos e bisnetos, registrar essas histórias. Gravar as memórias, preservar as fotografias, publicar os relatos. Porque, com cada português dessa geração que parte, parte também uma ponte viva entre Brasil e Portugal.
Porque antes de sermos futuros, somos feitos de passados. E o passado dessa última geração portuguesa no Brasil é parte essencial da nossa identidade. ■
José Luís Figueiredo
Especialista em Marketing Digital, IA e Automação no Brasil
donmarketing.br@gmail.com
Grande José, que texto bacana, traz muitas reflexões ao lusos que adentraram ao mar vindo para o solo brasileiro e que hoje formam e fazem parte desse nosso Brasil.
Forte abraço!!
Somos descendentes de povos diferentes e amigos de longas datas. Vindo de você o elogio e o abraço tormam-se ainda mais simbólicos. Abraço forte!!
Resumo perfeito da trajetória de imigrantes Portugueses.