Opinião: “Acordo Mercosul–UE: Parceria Estratégica de Ganhos Mútuos”, por Luíz Fernandes

“Para a UE, o pacto representa diversificação e liderança econômica. Com o Mercosul, a Europa ganha acesso privilegiado a um mercado emergente de 260 milhões de pessoas, rico em alimentos, energia e matérias-primas”

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Luíz Fernandes, advogado especialista em direito digital e desenvolvimento de negócios
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Após 25 anos de negociações, o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul finalmente avança para aprovação, configurando uma das maiores parcerias comerciais da história recente. Trata-se de um marco histórico que criará a maior zona de livre comércio do mundo, abrangendo mais de 700 milhões de consumidores. Neste artigo de opinião, analisamos as vantagens desse acordo tanto para a UE quanto para os países do Mercosul, indo além do óbvio e explorando benefícios específicos – do acesso a novos mercados até casos emblemáticos como o café brasileiro – sem ignorar aspectos jurídicos e desafios regulatórios.

Oportunidades para a União Europeia

Para a UE, o pacto representa diversificação e liderança econômica. Com o Mercosul, a Europa ganha acesso privilegiado a um mercado emergente de 260 milhões de pessoas, rico em alimentos, energia e matérias-primas. As empresas europeias terão vantagem pioneira num mercado antes protegido por tarifas elevadas. Estimativas da Comissão Europeia indicam que o acordo pode elevar as exportações anuais da UE ao Mercosul em até 39% (cerca de €49 bilhões), sustentando mais de 440 mil empregos por todo o continente, um impulso considerável ao crescimento econômico europeu.

Setores industriais europeus tradicionalmente competitivos deverão colher frutos imediatos. O tratado eliminará tarifas atualmente proibitivas sobre produtos-chave da UE, como os automóveis (35%), máquinas (14–20%) e fármacos (até 14%). Isso significa que carros alemães, máquinas italianas ou equipamentos franceses entrarão no Mercosul com preços mais acessíveis, ampliando exportações. Países como Alemanha e Espanha, grandes entusiastas do acordo, veem nele a chance de diminuir a dependência de mercados asiáticos e de atenuar impactos de políticas protecionistas norte-americanas. Já Portugal, que foi peça decisiva nas negociações, enxerga oportunidade de reforçar laços históricos com o Brasil. O presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) destaca que o pacto será especialmente relevante para PMEs portuguesas, facilitando o acesso direto ao mercado sul-americano e catalisando inovação, crescimento e empregos no país. Além disso, a UE garantiu a proteção de 350 indicações geográficas de produtos europeus tradicionais no Mercosul (queijos, vinhos, etc.), assegurando exclusividade de rótulos consagrados e valorizando a cultura gastronômica europeia.

Em termos estratégicos, a parceria UE–Mercosul vai além de comércio de bens. Ela fortalece a presença europeia na América Latina, alinhando dois blocos que juntos respondem por um PIB de US$ 22 trilhões. Também insere o Mercosul nas cadeias de valor europeias: espera-se um aumento de investimentos europeus em setores sul-americanos estratégicos, incluindo matérias-primas críticas (como lítio) essenciais à transição verde e digital. Isso contribuirá para cadeias de abastecimento mais estáveis e previsíveis em ambas as regiões. Em suma, a UE vê no acordo uma forma de reduzir dependências de parceiros únicos (notadamente China e EUA) e reafirmar seu compromisso com um comércio aberto e baseado em regras – um investimento geopolítico no futuro da Europa, nas palavras de líderes empresariais.

Benefícios para os países do Mercosul

Do lado sul-americano, os países do Mercosul – em especial Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai – também têm muito a ganhar. O acordo amplia o acesso de exportações agrícolas e minerais à Europa, mercado de alto poder de consumo. Em 2024, a UE já foi destino de 14,3% das exportações brasileiras, com destaque para commodities como petróleo (23%), café (11,6%), soja e celulose. Com tarifas caindo ou zerando em diversos produtos, essa participação tende a crescer. Estudos apontam potencial de aumento significativo nas vendas sul-americanas de carnes, soja, açúcar, café e biocombustíveis para os europeus. Produtos industrializados do Mercosul também podem conquistar espaço, graças à redução de tarifas em itens como derivados de aço e alumínio – importante para a indústria brasileira e argentina.

Mais diretamente, o tratado remove barreiras que há décadas limitam as exportações do Mercosul. Frutas tropicais e café, por exemplo, terão acesso livre de tarifas e sem cotas ao mercado europeu, abrindo novos nichos para produtores de alimentos da região. Isso é crucial para economias como a do Brasil, grande exportador de frutas e líder mundial em café. Já itens sensíveis para os europeus – carne bovina, aves, açúcar, etanol, entre outros – receberão quotas preferenciais: volumes determinados poderão entrar na UE com tarifa reduzida ou zero, garantindo abertura, porém de forma controlada. Por exemplo, a cota de carne bovina foi fixada em 99 mil toneladas anuais com tarifa intracota de 7,5% (bem abaixo dos pesados 178% de tarifa máxima hoje aplicados). No caso do açúcar, o Mercosul poderá exportar 180 mil toneladas anuais à UE com tarifa zero dentro da cota inicial. Esses limites protegem os agricultores europeus mais vulneráveis, mas ainda assim representam novas fatias de mercado para os produtores sul-americanos.

Importante notar que alguns benefícios serão graduais. O acordo prevê prazos de transição (4, 7, 10 anos, dependendo do produto) para redução tarifária completa. Isso dá tempo aos setores domésticos de ambos os lados para se adaptarem à competição maior. Ainda assim, o Mercosul sai da condição de relativo isolamento comercial – atualmente possui poucos acordos globais – para desfrutar de preferências tarifárias junto a um dos maiores importadores mundiais. Esse early mover advantage (vantagem do pioneiro) permitirá ao bloco sul-americano diversificar seus destinos de exportação e reduzir a vulnerabilidade a choques comerciais de outras potências. Por exemplo, frente a novas tarifas americanas sobre produtos brasileiros (como a sobretaxa de até 50% imposta a itens como café, aço e alumínio), a Europa tende a se tornar um destino prioritário, absorvendo volumes redirecionados e garantindo escoamento para a produção do Mercosul.

Os ganhos não se limitam aos exportadores. Consumidores e indústrias do Mercosul também serão beneficiados: a entrada de bens de capital e insumos europeus com impostos mais baixos barateará custos de produção e poderá elevar a competitividade das fábricas locais. Automóveis, máquinas e medicamentos importados da Europa devem ficar mais acessíveis, aumentando a oferta e estimulando investimentos em tecnologia. Por outro lado, a perspectiva de acesso ampliado a um mercado exigente como o europeu atua como fator modernizante para o Mercosul – incentivando melhorias em qualidade, rastreabilidade e sustentabilidade da produção local, para atender aos altos padrões da UE. Em suma, o acordo pode servir de alavanca para a integração do Mercosul nas cadeias globais, impulsionando o desenvolvimento econômico regional de forma equilibrada.

O caso do café brasileiro: um exemplo emblemático

Grãos de café: o Brasil, maior produtor mundial, espera expandir suas exportações de café industrializado para a Europa com o fim das tarifas. 

Entre os diversos setores beneficiados, o café se destaca como exemplo concreto de como o acordo Mercosul–UE pode gerar ganhos significativos. O Brasil é o maior produtor e exportador de café do mundo – em 2018 colheu 61,7 milhões de sacas (60kg) e exportou 36 milhões. Desse total, aproximadamente 49% (17,5 milhões de sacas) tiveram como destino a União Europeia, principalmente para países como Alemanha, Itália, Bélgica, França e Espanha. Ou seja, a Europa já é um mercado vital para a cafeicultura brasileira, e qualquer melhoria nas condições de acesso tem impacto direto.

O acordo resolve de vez um antigo entrave: a escalada tarifária que penalizava o café processado. Atualmente, enquanto o café verde (não torrado) brasileiro entra na UE isento de tarifa, o café torrado e o solúvel (processados de maior valor agregado) sofrem tarifa de 9% para ingressar no mercado europeu. Essa barreira tornava o produto brasileiro menos competitivo frente a concorrentes que já desfrutam de preferências tarifárias. Países como Vietnã, Colômbia e Equador possuem acordos ou status comerciais que lhes garantem tarifas menores – no caso do Vietnã, apenas 2% de imposto – o que permitiu que ganhassem espaço e tomassem fatia de mercado do Brasil na Europa. Com o Mercosul-UE, esse cenário muda: o tratado prevê zerar a tarifa sobre todo tipo de café brasileiro (verde, torrado, solúvel), equalizando as condições de concorrência. A taxa de 9% sobre o café torrado/solúvel será gradualmente eliminada em quatro anos após a entrada em vigor do acordo, até atingir livre comércio completo. Assim, os produtos brasileiros chegarão mais baratos e competitivos às prateleiras europeias, beneficiando desde o produtor rural até a indústria de processamento.

As expectativas do setor são elevadas. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Café Solúvel, a exportação de café industrializado para a UE pode crescer 35% em volume em cinco anos após a remoção total das tarifas. Esse salto deve recuperar terreno perdido e até expandir a presença do Brasil em um mercado de alto valor. Ademais, o acordo inclui regras de origem que incentivam a utilização do café brasileiro: para que empresas europeias possam exportar café torrado ou solúvel ao Mercosul com tarifas reduzidas, pelo menos 40% do conteúdo do produto deve ser de café verde originário do Brasil. Ou seja, até nas idas e vindas do comércio de café, garante-se espaço ao grão brasileiro, fortalecendo sua demanda.

Outra consequência positiva é o estímulo à industrialização local. Com a perspectiva de acesso preferencial à UE, multinacionais do ramo começam a olhar para o Brasil não só como fornecedor de matéria-prima, mas como base de processamento. Já há notícias de empresas internacionais (inclusive espanholas e suíças) de café em cápsulas e solúvel avaliando instalar unidades de torrefação em estados brasileiros como Espírito Santo, São Paulo e Minas Gerais. Produzir no Brasil para exportar à Europa pode ser vantajoso com a tarifa zero, agregando valor dentro do país. Para o produtor nacional, isso se traduz em nova oportunidade de negócio: regiões produtoras com Indicação Geográfica (cafés especiais) podem fechar parcerias e contratos com essas indústrias, aumentando seu poder de barganha e assegurando prêmios melhores pelo grão diferenciado. Em suma, o café exemplifica como o acordo Mercosul–UE vai além de simplesmente vender mais do mesmo produto – ele promove uma integração mais sofisticada, agregando valor e know-how, e tornando a cadeia produtiva mais competitiva internacionalmente.

Aspectos jurídicos e desafios regulatórios

Apesar do otimismo, é preciso considerar que um acordo dessa magnitude envolve complexidades jurídicas e enfrenta resistências que ainda precisam ser superadas. Na UE, a aprovação requer maioria qualificada dos Estados-membros (ao menos 15 dos 27 países, representando 65% da população do bloco) e aval do Parlamento Europeu. França, Polônia e Itália manifestaram oposição, preocupadas com o impacto nas suas agriculturas – especialmente setores como o bovino – e podem dificultar a ratificação. Para contornar essa relutância, a Comissão Europeia incluiu cláusulas de salvaguarda que permitem suspender concessões tarifárias se, por exemplo, a importação de determinado produto do Mercosul subir mais de 10% ou se o preço cair além disso, protegendo produtores locais de surtos de importação. Além disso, Bruxelas acenou com um fundo de €6,3 bilhões para apoiar os agricultores europeus caso enfrentem dificuldades na adaptação. Essas medidas dão respaldo político e mostram uma abordagem jurídica cautelosa para equilibrar abertura comercial com proteção a setores sensíveis.

No Mercosul, também houve inovação jurídica para assegurar o andamento do acordo. Tradicionalmente, tratados do Mercosul exigem ratificação por todos os países membros para entrar em vigor. Entretanto, prevendo possíveis atrasos ou bloqueios (como se temia da Argentina em caso de governo avesso à abertura), os sócios do Mercosul negociaram uma “cláusula de vigência bilateral” inédita: se pelo menos um dos Parlamentos nacionais aprovar o acordo, este pode entrar em vigor bilateralmente entre esse país e a UE, sem esperar os demais (desde que haja aprovação também do lado europeu). Nos bastidores, essa regra foi apelidada de “cláusula antiperonista”, uma referência preventiva ao histórico protecionismo de setores políticos argentinos. Na prática, significa que Brasil, Uruguai e Paraguai não ficarão reféns de uma eventual demora argentina – cada qual pode colher os frutos do pacto assim que cumprir seu trâmite interno, acelerando a implementação parcial do acordo.

Outro ponto relevante são os compromissos regulatórios e ambientais associados ao tratado. O acordo Mercosul–UE inclui um capítulo de desenvolvimento sustentável, com promessas de alinhar práticas ambientais e trabalhistas aos padrões internacionais. Há, por exemplo, um compromisso explícito de combater o desmatamento, visando zerar o desmatamento ilegal até 2030 nos países do Mercosul. Esse item surgiu para aliviar preocupações europeias quanto à preservação da Amazônia e outras florestas. Contudo, organizações ambientalistas criticam a falta de mecanismos de fiscalização efetiva e sanções nesse campo, temendo que as cláusulas verdes não sejam plenamente exigíveis. Em paralelo, a UE aprovou recentemente legislações unilaterais – como a proibição de importação de produtos ligados a desmatamento e as normas do Green Deal – que podem impor requisitos rigorosos aos exportadores. Produtores sul-americanos terão que se adequar a critérios de sustentabilidade e rastreabilidade para acessar de fato o mercado europeu, mesmo com tarifas zeradas. Não-tarifas são os novos obstáculos: barreiras sanitárias, fitossanitárias e ambientais tendem a ser utilizadas para restringir importações caso padrões não sejam atendidos.

Ciente desse cenário, o Mercosul negociou salvaguardas jurídicas no próprio acordo. A versão final do texto incluiu um mecanismo de reequilíbrio das concessões comerciais: se novas regras ambientais ou sanitárias da UE acabarem por prejudicar substancialmente as exportações sul-americanas, poderá haver consulta e ajuste nas obrigações para restaurar o equilíbrio. Essa cláusula, celebrada pelo setor agropecuário brasileiro, funcionaria como um “seguro” contra medidas protecionistas encobertas sob o manto verde europeu. Em última instância, contudo, a chave será a cooperação: a convergência regulatória e o diálogo serão essenciais para que os benefícios econômicos do acordo não se percam em disputas jurídicas posteriores. Ambos os lados terão de trabalhar juntos para harmonizar padrões, trocar tecnologias limpas e assegurar que o comércio cresça de mãos dadas com a sustentabilidade.

Conclusão

O acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul configura-se como uma parceria de ganhos recíprocos, unindo economias complementares em um momento oportuno. Para a Europa, ele oferece acesso a mercados e recursos vitais, reduzindo dependências externas e afirmando liderança no comércio global. Para os sul-americanos, abre-se uma avenida para exportar mais e melhor, atrair investimentos e agregar valor à produção local, do agronegócio à indústria. Setores emblemáticos, como o café brasileiro, ilustram o enorme potencial: mais do que aumentar vendas, o pacto permite uma inserção mais qualificada nos fluxos econômicos globais.

É verdade que desafios permanecem. As preocupações legítimas com meio ambiente e agricultura familiar exigem salvaguardas e políticas de apoio – e estas foram parcialmente endereçadas no desenho do acordo. A ratificação final ainda depende de vontade política e de um consenso delicado, tanto na Europa quanto no Mercosul. No entanto, seria um equívoco estratégico deixar essa oportunidade escapar. Em uma era de incertezas geopolíticas e tendências isolacionistas, UE e Mercosul dão, com este acordo, um passo audacioso em favor do multilateralismo e do desenvolvimento compartilhado.

Em última análise, a concretização do acordo Mercosul–UE enviará uma mensagem poderosa: a de que é possível conciliar comércio e valores, crescimento e sustentabilidade, diferentes realidades econômicas em um projeto comum. Cabe agora aos legisladores e às sociedades dos dois lados do Atlântico transformar em realidade esse potencial, colhendo os frutos – econômicos, sociais e estratégicos – de uma parceria verdadeiramente histórica. ■

Luíz Fernandes

Advogado especialista em direito digital e desenvolvimento de negócios

*Os artigos de opinião são de inteira responsabilidade dos seus autores e não refletem, necessariamente, a visão do nosso órgão de comunicação social

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