O modelo de geração centralizada expôs recentemente a fragilidade das redes elétricas tradicionais na Europa, com apagões que poderiam ser evitados por um sistema descentralizado de geração distribuída. Ao empoderar prosumidores — cidadãos que produzem, consomem e até vendem o excedente de energia — as cidades podem alcançar níveis de autossuficiência próximos de 100 %, reduzindo drasticamente a dependência do fornecimento público e fortalecendo a resiliência urbana. Além de mitigar riscos de apagões em massa, essa abordagem cumpre diversos regulamentos europeus, promovendo a transição energética e o desenvolvimento de cidades inteligentes.
Vulnerabilidades do Modelo Centralizado
A falha de energia em 28 de abril de 2025 em Portugal e na Espanha, afetando França e Andorra, deixou milhões de pessoas sem eletricidade, e as causas ainda não foram definidas pelas autoridades europeias. Redes de transmissão de alta tensão concentram o fluxo em poucas artérias; a suspeita de contingência num ponto crítico pode levar a um efeito cascata que derruba toda a rede. Além disso, reforçar largas distâncias de linhas exige longos processos de licenciamento e elevados investimentos, retardando respostas rápidas a variações de oferta ou procura.
Geração Distribuída e Autoconsumo
Exemplos como a ilha de El Hierro, nas Canárias, demonstram que comunidades podem atingir 100 % de autossuficiência energética usando fontes renováveis locais — no caso, hidrogénio, eólica e hídrica — servindo de referência global para cidades inteligentes. No contexto urbano, coberturas de edifícios públicos e privados permitem instalar painéis solares que abastecem diretamente os próprios consumidores, reduzindo perdas e picos de carga.
Venda do Excedente
Os prosumidores não só satisfazem a própria procura; podem ainda injetar o excesso na rede pública, aliviando o sistema durante horários de ponta e recebendo contrapartida financeira via net metering ou tarifas de injeção (feed-in tariffs).
Quadro Legal Europeu – Diretiva (UE) 2018/2001 (RED II)
Esta diretiva estabelece uma meta vinculativa de 32 % de energia renovável no consumo final até 2030 e, pela primeira vez, regula o autoconsumo, garantindo aos cidadãos o direito de gerar energia para uso próprio.
Diretiva (UE) 2019/944 e Pacote “Clean Energy”
O recast da Diretiva de Eletricidade (2019/944) impõe aos Estados-Membros a modernização das redes de distribuição, incluindo a introdução de redes inteligentes para gerir fluxos bidirecionais de energia e facilitar a participação de prosumidores no mercado.
Regulamento Europeu 2019/943 e Lei Europeia do Clima
O Regulamento de Mercado Elétrico (2019/943) complementa as diretivas, criando mecanismos para mercados de flexibilidade, enquanto a Lei Europeia do Clima fixa a neutralidade carbónica até 2050, devendo todos os instrumentos nacionais alinhar-se com estas obrigações.
Transposição Nacional – Portugal: DL 162/2019 e DL 15/2022
O Decreto-Lei n.º 162/2019 institui o regime jurídico do autoconsumo de energia renovável, transpondo parcialmente a diretiva RED II e simplificando autorizações para microprodução até 10 kW. O Decreto-Lei n.º 15/2022, por seu turno, integra as disposições de autoconsumo no funcionamento do Serviço Elétrico Nacional, reforçando obrigações de disponibilização de redes inteligentes pelas distribuidoras.
Espanha: RD 244/2019
O Real Decreto 244/2019 melhorou as condições administrativas e económicas para prosumidores fotovoltaicos, eliminando o “imposto do sol” e ampliando o acesso a tarifas de injecção, o que impulsionou um crescimento expressivo do autoconsumo no país.
França: Loi énergie-climat
A Lei Energia-Clima de 2019 definiu a neutralidade carbónica para 2050 e incluiu medidas para dinamizar comunidades de energia renovável, criando um quadro favorável ao surgimento de cooperativas e iniciativas cidadãs de geração local.
Conformidade e Cidades Inteligentes
A adoção de geração distribuída e prosumidores enquadra-se nas obrigações europeias de modernização da rede e eficiência energética, ao mesmo tempo em que fornece dados granulares de consumo e produção para plataformas de gestão urbana. Esse fluxo de informação e flexibilidade energética é pilar essencial para a operação de cidades inteligentes, permitindo otimização de recursos, resposta automática a eventos e planeamento urbano sustentável.
Conclusão e Recomendações
Para evitar novos apagões de larga escala e cumprir com as diretivas e regulamentos europeus, recomenda-se:
- Potenciar incentivos financeiros ao autoconsumo e venda de excedente;
- Simplificar licenciamento para instalações até 10 kW;
- Acelerar a instalação de redes inteligentes pelas distribuidoras;
- Fomentar comunidades de energia e prosumidores em zonas urbanas;
- Integrar dados energéticos em plataformas de cidades inteligentes para otimizar a gestão de infraestruturas e responder em tempo real a variações de carga.
Este enquadramento legal e técnico torna viável que as cidades europeias consigam gerar e consumir quase 100 % da energia que utilizam, aumentando a resiliência, reduzindo custos e promovendo a sustentabilidade. ■
Luíz Fernandes
Advogado especialista em direito digital e desenvolvimento de negócios
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