
Máquinas a produzir máquinas já não é uma metáfora industrial, é um roteiro tecnológico em andamento. Tenho observado como o avanço das chamadas fábricas escuras, ambientes altamente automatizados que poderiam funcionar literalmente com as luzes apagadas, combinadas com a nova geração de robôs humanoides, está a redesenhar silenciosamente o futuro do trabalho, da defesa e da própria geopolítica. Não estou a dizer que isso acontecerá de forma inevitável ou em data marcada, mas que o tabuleiro já está montado para que esse tipo de cenário se torne possível. Na Europa, que discute o AI Act e tenta equilibrar competitividade, regulação e soberania tecnológica, esse tema deixa de ser curiosidade de nicho e passa a ser assunto de estratégia de Estado.
O conceito de produção lights out descreve fábricas capazes de operar praticamente sem pessoas, monitorizadas à distância por software e sensores, enquanto robôs cuidam de montagem, inspeção e logística interna. Em bom português, é a fábrica que pode trabalhar de madrugada, quase no escuro, com esteiras, braços mecânicos e câmaras a funcionar sozinhos, enquanto um pequeno grupo acompanha tudo por telas. Em países como a China, esse modelo ganha força para responder à escassez de mão de obra e à pressão por competitividade, e mesmo na Europa já existem fábricas altamente automatizadas a operar com intervenção humana mínima. Vejo esse modelo como a base física de um próximo salto, o momento em que essas estruturas, hoje focadas em bens de consumo e componentes, passem a produzir, em escala, os próprios robôs que irão substituir pessoas em tarefas cada vez mais críticas.
Do lado dos humanoides, a corrida também está lançada. Fabricantes chineses e europeus recebem incentivos públicos para desenvolver robôs andantes capazes de trabalhar em ambientes desenhados para humanos, enquanto gigantes industriais testam essas máquinas em linhas de montagem, armazéns e centros logísticos. Quando leio esses anúncios, não vejo apenas inovação, vejo um ensaio geral do que pode vir a seguir. O próprio CEO da Xiaomi já declarou a intenção de colocar humanoides a operar nas suas fábricas em poucos anos, como parte de uma estratégia de reindustrialização apoiada em inteligência artificial. Quando junto essas duas peças, fabrico quase totalmente automatizado e humanoides industriais, o cenário torna se claro, teremos linhas de produção que montam, testam e calibram outros humanoides, com humanos concentrados em supervisão, auditoria e regulação.
Há um terceiro elemento que, para mim, funciona como um sinal amarelo, a chegada dos humanoides a postos de fronteira. A China anunciou recentemente um contrato de alto valor para implantar robôs humanoides em pontos de fronteira com o Vietname, com funções oficiais de orientação a viajantes, gestão de filas, apoio logístico e patrulhamento de áreas sensíveis. Hoje, o discurso é eficiência, redução de risco para agentes humanos e maior controle operacional, algo compreensível. Amanhã, os mesmos protótipos podem receber sensores mais avançados, reconhecimento facial, tomada de decisão automática em cenários de risco e, num passo seguinte, integração com sistemas de armas em contextos de conflito. Não se trata de prever um desastre, mas de reconhecer que cada uso aparentemente neutro hoje abre espaço para decisões muito mais sensíveis amanhã. Historicamente, fronteiras costumam ser o laboratório discreto de futuros campos de batalha.
E Agora?
Quando fábricas escuras, guiadas por inteligência artificial, forem capazes de produzir humanoides em série, não estaremos apenas a discutir produtividade ou redução de custos. Estaremos a desenhar uma nova hierarquia de poder, em outras palavras, quem manda mais na economia e nas decisões globais. Países e empresas que controlem a capacidade de fabricar verdadeiros exércitos de máquinas inteligentes, sejam operários, cuidadores ou soldados, terão uma vantagem difícil de compensar apenas com diplomacia ou soft power. Acredito que a Europa, com o AI Act, o GDPR e uma tradição de políticas públicas voltadas para direitos sociais, tem a oportunidade de liderar um modelo alternativo, em que automação extrema não signifique simplesmente substituição cega de pessoas. Não escrevo isto como profecia, mas como convite a pensar com calma sobre o tipo de poder que estamos a construir. A pergunta que me inquieta é simples e incômoda, se um dia tivermos fábricas totalmente automatizadas a produzir humanoides capazes de vigiar fronteiras, operar armas e tomar decisões em campo, o que garante que estes soldados de silício estarão sempre do nosso lado? Esta pergunta merece mais do que respostas rápidas, merece que nós, humanos, discutamos ética, governança e limites antes que as máquinas comecem, literalmente, a construir a próxima geração de máquinas. ■
André Aguiar
Especialista em Marketing, Escritor, Professor, Palestrante e Referência em Inteligência Artificial Aplicada aos Negócios; Licenciatura em Matemática, MBA em Marketing Digital e Analista de Sistemas
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