Na efervescência dos anos 1960, milhares de portugueses cruzaram o Atlântico em busca de novas oportunidades no Brasil. Entre 1950 e 1970, mais de 400 mil pessoas desembarcaram, muitas das quais se estabeleceram no Rio de Janeiro e apostaram no comércio. Foi nesse cenário que o então adolescente Domingos Cunha, natural de Póvoa de Lanhoso, Braga, chegou à cidade em 1964, aos 14 anos, iniciando a sua trajetória profissional.
“A vontade de progredir trouxe-me ao Brasil em 1964, ainda muito jovem”, recorda Domingos, hoje, aos 75 anos, um veterano do comércio carioca e um dos sócios do Bar e Restaurante Glória, referência da tradição luso-brasileira no Centro financeiro do Rio de Janeiro. Fundado em 1945, o estabelecimento completou oito décadas de história, consolidando-se numa área que passou por várias transformações urbanas nos últimos anos.
Resistência e reinvenção no centro do Rio
Localizado na Rua do Acre, 6, o Glória está próximo da revitalizada praça Mauá, que ganhou novos contornos culturais e turísticos após a demolição do Elevado da Perimetral, em 2013. Domingos relembra os impactos das mudanças na região.
“Como tudo na vida, também houve muitos desafios para seguir adiante, como a demolição do viaduto da Perimetral e a pandemia de Covid-19, mas sobrevivemos, e aqui estamos”, disse.
A capacidade de adaptação, marca do restaurante, chama a atenção de frequentadores e entusiastas da gastronomia, como o jornalista Diego Costa, criador do canal “Comida Federal” no YouTube. Ao visitar o local, ele destacou que “um restaurante resistir quase 80 anos aqui no Centro do Rio de Janeiro é prova de persistência, principalmente nessa rua onde está localizado”.
“Passar pela pandemia e continuar de portas abertas é admirável”, completou o influencer.
Durante a pandemia, quando cerca de 80% dos comércios da região fecharam, o Glória manteve-se ativo. A gestão de Domingos, moldada por uma visão empreendedora e pela valorização das tradições, mostrou-se decisiva para superar os períodos mais difíceis.
Sabores de tradição e comida do dia a dia ao gosto do carioca
A cozinha do Glória é um dos pilares da sua longevidade. O cardápio aposta na fusão entre a gastronomia portuguesa e a brasileira, com destaque para pratos como o leitão à bairrada — frequentemente apontado pelos clientes como o melhor do Rio —, o bacalhau, preparado de diversas maneiras, e a feijoada à Trasmontana.
Entre as opções mais populares do estabelecimento, figuram receitas do quotidiano carioca, como nhoque de aipim com carne assada, costela bovina com batata e agrião, carne-seca com abóbora, frango com quiabo e a tradicional feijoada completa. A sobremesa de banana flambada com gelado, preparada na hora, também tornou-se num atrativo.
A proximidade do Glória com o edifício “A Noite” é um marco importante. O local foi palco da histórica Rádio Nacional do Rio de Janeiro, fundada em 1936, e do Jornal “A Noite”, além do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), sendo considerado o primeiro arranha-céu do país construído com óleo de baleia e sobre rochas. Informações que conferem ao restaurante um vínculo com a rica tradição cultural da região.
Atualmente, o público do Glória é formado por turistas, estudantes de universidades próximas e funcionários de empresas da região, que consolida o restaurante como ponto de encontro nessa região carioca.
Domingos Cunha, que formou família no Brasil e se diz grato pelas oportunidades encontradas, afirma ter planos de retorno ao país natal, mas apenas para passeio, “apesar de amar Portugal”. ■
